Com Norte-Sul, o Atlântico fica mais perto

A pequena cidade de Colinas do Tocantins parece viver em um eterno domingo nestes dias secos e quentes que precedem a temporada de chuva. O sol inclemente do cerrado desafia quem se aventura pelas ruas pouco arborizadas desse município de 30 mil habitantes localizado nas margens da rodovia Belém-Brasília, 280 quilômetros ao norte de Palmas. Seja pelo calor que não raro supera a casa dos 45 graus, seja pelas ruas pouco movimentadas ou mesmo porque simplesmente pouca coisa acontece por ali, Colinas a a impressão de estar em permanente torpor.


Esse clima de bucolismo senegalês, no entanto, esconde o curso acelerado de mudanças profundas que devem não só transformar Colinas, uma cidade paradoxalmente plana, como toda a região do Centro e do Norte do Tocantins, impactando o Nordeste do Mato Grosso, o Maranhão, o Piauí e o Oeste bahiano. Lá será instalado o centro nervoso de um dos mais importantes projetos de infra-estrutura logística que estão sendo realizados no país: um dos principais pontos de operação da Ferrovia Norte-Sul. 


Projeto antigo da época em que José Sarney ainda era presidente da República, a ferrovia, que acreditava-se na época ligaria o nada a lugar nenhum, está próxima de ter um de seus trechos mais importantes concluídos já no ano que vem. Até dezembro de 2009, a Valec, estatal criada no fim dos anos 80 com o único objetivo de construir a ferrovia, garante que colocará o último dos 720 quilômetros de trilhos que ligarão Palmas à cidade maranhense de Açailândia, por onde a a Estrada de Ferro dos Carajás, que vai desembocar no Porto de São Luís. O projeto prevê que a ferrovia se estenda até Anápolis (GO), mas este trecho ainda não foi nem mesmo leiloado. 


Apesar de sua importância ser praticamente ignorada por boa parte da população local, o consenso entre produtores agrícolas, órgãos governamentais, investidores e empresas de logística é de que a Norte-Sul será responsável pela abertura de uma nova e pujante fronteira agrícola no país. Não sem razão a Vale, que é dona da Estrada de Ferro dos Carajás, aceitou pagar quase R$ 1,5 bilhão para controlar a Norte-Sul por 30 anos e, assim, ter sob seu domínio todo o corredor logístico que está sendo criado entre o interior do Tocantins e São Luís, que tem o porto brasileiro mais próximo dos mercados americano, europeu e asiático. 


A Vale fez uma aposta firme de que essa nova fronteira da agricultura brasileira vai se estabelecer em torno da Norte-Sul. É por ali, acredita a companhia ainda pouca afeita aos negócios agrícolas, que um novo ciclo de riqueza vai se estabelecer inexoravelmente. A expansão da agricultura brasileira, em especial a produção de grãos, a por essa região do país e nós seremos o motor de propulsão desse desenvolvimento com a ferrovia, diz Marcelo Spinelli, o otimista diretor comercial de Logística da Vale. 


Por sua posição geográfica, a cidade de Colinas é estratégica nesse plano ambicioso de redirecionar a expansão agrícola nacional. Vários pontos de transbordo serão instalados ao longo da ferrovia, mas é no grande terminal que está sendo construído a 30 quilômetros da praça principal da cidade que a Vale pretende embarcar a maior parte das quase 9 milhões de toneladas de grãos que espera estar transportando pela ferrovia em 2013. Já no próximo ano, sem que toda a infra-estrutura de armazéns esteja pronta, a companhia acredita que irá embarcar em Colinas algo próximo a 500 mil toneladas de soja produzidas, principalmente, no Nordeste do Mato Grosso. Vamos captar soja do Mato Grosso, de Tocantins, do Maranhão, do Piauí e mesmo da Bahia. Somos o incentivo para novas unidades industriais e a entrada de novas culturas, como a cana, vai mudar tudo por ali; será uma revolução naquela região, diz Spinelli, em um confortável e refrigerado escritório na capital paulista localizado no 24º andar de um um moderno edifício com pomposo nome em inglês. 


O Terminal de Colinas só deve encontrar páreo no de Porto Nacional, próximo a Palmas, que deve ter as operações iniciadas em 2010. Por isso, todo o esforço está concentrado lá, onde os trilhos da ferrovia estão distantes apenas 30 quilômetros. Por conta dos prazos apertados, cerca de 800 homens se dividem na construção de dormentes, no transporte dos trilhos, na terraplanagem da área onde será o principal terminal Intermodal da ferrovia e, o terror dos operários, na colocação dos trilhos em si, ou seja, o acabamento da obra. É uma rotina pesada, que começa as sete da manhã e só termina as seis da tarde, sempre sob uma temperatura que muito raramente fica abaixo dos 40 graus. 


Jonas de Jesus da Silva e Flaísson Barbosa de Andrade, dois quase garotos de 18 anos que insistem em deixar a rala barbicha crescer livremente, têm estado nessa lida há menos de um mês. A função deles é alinhar manualmente, com a ajuda de vergalhões de cerca de dois metros, os dormentes de mais de 300 quilos que são colocados por uma espécie de pequeno guindaste sobre trilhos.


Chegaram ali meio a contragosto, vindos de Aguiarnópolis, uma pequena cidade tocantinense quase na divisa com o Maranhão. Suas histórias são muito semelhantes a dos outros operários que atuam na construção da Norte-Sul. Agricultores familiares ou filhos destes de cidades pequenas do Tocantins, do Maranhão, do Pará e do Piauí onde praticamente não há emprego. Esse é um trabalho para quem não tem mais nada, porque trabalha-se muito, ganha-se pouco e ainda fica longe da família por 27 dias todos os meses, diz Luciano Alves Ferreira, o chefe de Jonas e Flaisson, cujo o cargo, ao menos no nome, remonta aos tempos do Brasil escravagista. Luciano, que foi trocado pela mulher recentemente por conta das ausências freqüentes, tem orgulho em ser feitor de ferrovias. 


Jonas sonha em ser ator de novelas, como Marcos Palmeira, seu ídolo, e Flaisson quer ser motorista de caminhão, como o irmão mais velho. Trabalhamos muito aqui, não tem tempo para nada, só trabalhar, e assim não posso estudar, ai o sonho fica só nisso mesmo, em sonho, diz Jonas, que ganha, assim como Flaisson e a maior parte dos operário, apenas R$ 1,93 por cada hora trabalhada sob o sol do Tocantins, menos de R$ 19,00 ao dia, com descontos. 


Os dois amigos de Aguiarnópolis fazem parte de um grande contingente de tocantinenses que não acreditam que a ferrovia mudará a realidade da região. Seja por conta das promessas de trens circulando por ali que se repetem há 20 anos, seja pelas expectativas frustradas ou pela simples sensação de que toda a riqueza que será transportada pelos vagões não lhes pertencerá, é mais fácil encontrar céticos do que crentes nos efeitos benéficos da Norte-Sul. Por mais estranho que seja, há uma sensação generalizada entre aqueles que não estão diretamente ligados à produção de soja de que a ferrovia será apenas isso, uma ferrovia; e não o catalisador de uma onda de desenvolvimento econômico poderoso. 


Walquíria dos Santos não é exatamente uma mulher mal-humorada, mas sempre que fala sobre a Norte-Sul acaba se exaltando um pouco. Paranaense, veio para o Tocantins há mais de 15 anos em busca de um prometido Eldorado, que acabou se transformando em um hotel bastante modesto em Colinas. Já se falou tanto, já veio tanta gente aqui e nada nunca saiu do lugar que acho que esse trem só vai ajudar quem planta soja, diz ela, com uma quase disfarçável irritação. 


As opiniões de Walquíria não têm embasamento em informações concretas, mas curiosamente são muito semelhantes às de Soneliz Borges, secretária de finanças de Colinas. Ela, como Walquíria, não crê em mudanças profundas com a chegada da Norte-Sul. Tivemos um pequeno aumento no comércio, mas nada expressivo, diz ela, em uma acanhada e abafada sala na prefeitura. Quem vai se beneficiar é o produtor de soja. 


O ceticismo entre os moradores do entorno da ferrovia parece quase inexplicável diante do certo processo de desenvolvimento que uma obr

Fonte: Valor Econômico

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