Se tudo der certo, o transporte ferroviário de carga deva ar por uma mudança estrutural nos próximos anos o novo plano para o setor, lançado em agosto pelo governo, mexe com uma situação que foi diagnosticada como um fator de atraso para a economia brasileira: cada ferrovia no país funciona como um monopólio. Ou seja, as operadoras, até agora, são senhoras absolutas dos trilhos que receberam em concessão há 15 anos.
Para romper com isso, e criar competição no setor, foi anunciada a retomada das concessões. Trechos privatizados entre 1996 e 1997, como o o ao porto de Santos e a ligação de São Paulo ao Rio Grande do Sul, voltaram para o controle público.
Cinco concessionárias que pagaram 5 bilhões de reais pelo direito de exploração exclusiva de sete trechos até 2026, ainda não receberam informações oficiais sobre como serão recompensadas pela quebra dos contratos.
A estimativa do mercado, porém, é que empresas como a MRS, operadora da malha sudeste, e a ALL, que faz a gestão das malhas oeste, sul e paulista, possam receber ao menos 500 milhões de reais a título de compensação.
À primeira vista, uma guinada tão radical parece um intervencionismo copiado de países autoritários. Mas, na verdade, a decisão foi inspirada em um modelo criado na Inglaterra. Em 1994,o governo inglês estava descontente com a queda de participação das ferrovias no total do transporte de carga. Menos de 6% do volume de mercadorias cruzava o país por trilhos.
Constatou-se que o problema era o monopólio das operadoras. Cinco empresas dividiam o controle de diferentes trechos e criavam empecilhos para que os concorrentes pudessem utilizar suas rotas, o que fazia com que as operadoras de logística priorizassem o transporte rodoviário.
Naquele mesmos ano, o departamento oficial de transporte retomou as concessões e ou ele mesmo horários para as empresas interessadas no transporte ferroviário. A estratégia levou o renascimento das ferrovias no transporte de carga inglês. Hoje, 25 empresas dividem os trilhos regularmente e há mais de 100 pequenas operadoras que alugam composições de terceiros para transportes esporádicos.
A expectativa do governo brasileiro é que um processo semelhante ocorra aqui. Como hoje não existe competição ferroviário no país, o frete de uma carga que sai do Mato Grosso por rodovia custa apenas 5% menos se seguir de trem. Nos EUA, a diferença entre fretes na rodovia e na ferrovia é de quase 40%. “O novo modelo vai simplificar a operação e atrair novas empresas para o transporte ferroviário de cargas”, diz Fernando Simões, presidente da JSL Logística, empresa que atualmente se concentra no transporte rodoviário e tem interesse em utilizar as ferrovias.
Hoje, o que preocupa o mercado não é o novo modelo em si, mas o nível de transparência que sua gestão poderá ter. Os trechos retomados, bem como aqueles que futuramente vão ser concedidos, e que ainda estão em obras, arão a ser istrados pela Valec, estatal criada em 2008 com a intenção de construir e fiscalizar ferrovias.
A Valec, no entanto, não conseguiu dar a celeridade esperada às obras do setor, e ainda foi enviada em seguidos escândalos, como desvio de 60 milhões de reais identificado na operação Trem Pagador, da Polícia Federal, em agosto do ano ado. O ex-presidente da empresa, José Francisco das Neves, conhecido como Juquinha, foi preso em julho deste ano.
Ele é suspeito de ocultação e dissimulação da origem de dinheiro e imóveis, adquiridos em seu nome e no de familiares com recursos obtidos indevidamente durante sua gestão, de 2003 a 2011. Por esse motivo, o mais coerente seria que a Valec fosse extinta ou perdesse pode. Mas, ao contrário, ela será premiada ao assumir um papel ainda mais relevante e estratégico no novo sistema que foi desenhado.
A Valec ará a gerenciar todo o tráfego nos 10 mil km de trilhos incluídos no Programa Nacional de Logística e Transporte. Na posição de superestatal das ferrovias, ela vai cobrar pedágio das operadoras interessadas em utilizar as vias. A empresa perdeu o papel de construtora e ganhou o de negociadora – o governo volta a ser o coordenador da modernização e da ampliação da infraestrutura, negociando diretamente a contratação de empresas para a construção e a manutenção das ferrovias.
Custo bilionário
Até o fechamento desta edição, porém, a Valec continuava a atuar como uma empresa especializada em construção e não havia iniciado nenhum movimento que capacitasse a trabalhar como vendedora de espaços e horários dos trens. Não havia sido cancelado o concurso público que deverá selecionar 200 engenheiros para obras que ainda estão sob sua responsabilidade. E não havia dado nenhum para iniciar a contratação de profissionais para a futura área comercial, que vai concentrar suas operações.
Na avaliação de especialistas, caso a Valec não seja estruturada, o setor corre o risco de sofrer um retrocesso. Até a privatização em 1997, o sistema ferroviário gerava perda de 300 milhões de reais anuais para o governo. Ainda hoje há trechos que precisam de atenção redobrada para ser rentáveis.
Estima-se que de 30% a 40% da malha poderá se tornar subutilizada sem uma gestão adequada. A Valec já advertiu que o governo terá que arcar com os custos iniciais da operação que podem chegar a 4 bilhões de reais por ano. O receio é a falta de interessados em comprar espaços nos trens. “O o ao Porto de Santos é um filé mignon e nunca vai dar problema”, diz Manoel Reis, coordenador do centro de estudos logísticos da FGV. “Mas há várias rotas no interior em que é difícil ganhar dinheiro”.
Paralelamente, a Valec ainda precisa ter competência para destravar empreendimentos complexos. Um deles é o ferroanel – o contorno ferroviário da cidade de São Paulo. O projeto tem mais de 20 anos e não sai do papel porque os governos federal e estadual têm divergências em relação ao traçado. A união defende a prioridade da construção do trecho norte, para criar um novo corredor de exportação, principalmente para minérios. O governo paulista quer que o trecho sul saia primeiro, para facilitar o escoamento de produtos agrícolas. Atualmente, os trens de carga dividem os trilhos com as composições de ageiros, mas a convivência está cada vez mais complicada.
O número de usuários não para de crescer, o que reduz o tempo disponível para o trânsito de cargas. Hoje a carga pode utilizar os trilhos por 8 horas, divididas em diferentes períodos do dia, para cruzar a cidade – e pior, por questões de segurança, os trens precisam fazer a travessia a 10 km por hora. O Brasil já perdeu muito por não levar a sério o transporte por trilhos.
Sem estrutura e gente competente, a Valec é mesmo a resposta ao desafio?
Leia também:
Seja o primeiro a comentar