O Globo (Opinião) – Há muitos critérios para o Estado discriminar entre os particulares. Um deles é a precedência temporal do requerimento do interessado. Mas esse critério somente é issível em situações muito excepcionais. Na generalidade dos casos, o critério cronológico infringe a isonomia.
A inconstitucionalidade é evidente quando a discriminação entre os particulares envolve atividade de interesse coletivo. Quando se trata de autorizar um serviço destinado a satisfazer necessidades comuns da coletividade, a precedência temporal do requerimento do particular é irrelevante. A escolha deve se fundar na proposta mais apta a promover serviço adequado. O critério cronológico não permite avaliar a satisfatoriedade da proposta.
Ninguém ousaria defender seleção para ingresso no serviço público fundada na ordem cronológica de inscrição, de modo que o primeiro candidato a se inscrever fosse classificado em primeiro lugar.
Aliás, o STF rejeitou a seleção de particulares não precedida de procedimento objetivo e impessoal, norteado pelo princípio da eficiência (ADI 1.923). Exigiu procedimento de chamamento público.
Apesar disso, a Portaria 131 do Ministério da Infraestrutura, de 14/10/2021, consagrou o critério cronológico para deferimento de autorização ferroviária (art. 9º, § 1º: “Verificando-se a incompatibilidade locacional ou outro motivo técnico-operacional relevante que impossibilite a implantação concomitante de autorizações citadas no caput, será priorizada a outorga de autorização de acordo com a ordem de apresentação da documentação completa elencada no art. 5º”).
A decisão não será fundada em critérios científicos, técnicos ou econômicos. Não haverá estudo de impacto econômico, nem avaliação comparativa entre as propostas apresentadas pelos diversos interessados.
Em situação similar, a Lei 12.815 previu que a autorização de instalações portuárias seria precedida de chamada ou anúncio público e, quando houvesse mais de um interessado, de um processo seletivo público. Não existe fundamento para que a outorga de autorizações ferroviárias deixe de observar exigências mínimas semelhantes. A própria MP 1.065 previu que a seleção do particular para obtenção da autorização seria feita por meio de chamamento público (art. 6º), impondo-se a interpretação de que essa solução seria aplicável sempre que existisse pluralidade de interessados.
Logo, a solução da ordem cronológica adotada pela Portaria 131 é ilegal por ignorar a disciplina da MP 1.065. Mais do que isso, é inconstitucional. Infringe a isonomia porque elege critério inadequado para diferenciar sujeitos em situação equivalente. E a indisponibilidade do interesse público exige que a istração opte pela solução mais vantajosa para a coletividade, o que exige o exame do conteúdo das propostas.
A questão é ainda mais grave por três razões adicionais.
A Portaria não prevê mecanismos de participação da sociedade civil. Não contempla audiências ou consultas públicas, o que infringe a natureza democrática da atuação regulatória estatal.
Depois, a Portaria conduz a soluções definitivas e de longo prazo. As autorizações ferroviárias serão deferidas pelo prazo de até 99 anos, renováveis sucessivamente. Decisões equivocadas produzirão efeitos nocivos por um longo período de tempo.
Além disso, a Portaria 131 regulamenta a MP 1.065, de 30/08/2021, que ainda se encontra em trâmite legislativo. É possível que dita MP não se converta em lei. No mínimo, o texto legislativo final sofrerá alterações significativas, que possivelmente serão incompatíveis com as regras da Portaria. Essa situação de incerteza é incompatível com o deferimento imediato de autorizações com longo prazo de vigência.
A insuficiência do transporte ferroviário brasileiro decorreu de ações e omissões equivocadas de governos ados. Os erros anteriores não justificam soluções presentes impensadas, adotadas sem fundamento técnico-científico e sem o controle da sociedade civil. Isso precisa mudar. O futuro do transporte ferroviário brasileiro está em jogo.
Por Marçal Justen Filho
*Advogado
O Globo (Opinião) . Jornalismo de 2ª linha. A voz do “dono”.
Vejam o que o nobre advogado sugere: critérios científicos, técnicos ou econômicos para a decisão sobre um empreendimento privado onde o risco do negócio é exclusivamente do agente proponente. Esqueceu de falar que cada análise sugerida demanda anos de estudos por parte do interessado e, por sua complexidade, tantos outros anos de análise e decisão por parte do MInfra, agência reguladora e TCU. Editais, publicações impugnações e por ai vai. Sem falar que todo esse amaranhado de análises e pareceres sempre deixa uma brecha para judicialização por agentes inconformados. É um custo enorme, um tempo dilatado e muitos agentes e interesses envolvidos. Vejo conflito de interesse na proposta, vejo que o que propõe é na verdade reforçar o custo Brasil e relegar ao atraso essa grande nação.