Folha de São Paulo – A presidente da Petrobras, Magda Chambriard, é o expoente máximo da diversidade de gênero na área de infraestrutura, e ela mesma conta que, por ser mulher, teve de demonstrar tenacidade até chegar lá.
Ela lembra que em 2002, por exemplo, o recém-indicado diretor para a Agência Nacional de Petróleo, Newton Monteiro, seu colega na estatal, a convidou para ser sua assessora. Um jornal publicou que Monteiro estava levando uma “colega” –assim, entre aspas.
“Metade da agência achava que eu tinha um caso com ele, a outra metade tinha certeza, porque eles não viam nenhuma outra razão para eu ter ido, a não ser, ter um caso. Eu acho isso absolutamente espetacular”, contou à Folha.
“Decidi não tomar conhecimento, e essa postura sempre ajudou. Tive situações em que colegas chegavam para mim, olhavam e falavam: ‘Magda, eu gosto muito de você, está tudo ótimo, mas eu não consigo te obedecer porque você é mulher’. E eu respondia: bom, esse problema não é meu, né? É seu.”
É fato que o mercado de trabalho evoluiu nas últimas décadas e reações como essas são cada vez mais raras, mas não dá para ser ingênua: persistem. Mulheres ainda enfrentam resistência para avançar no setor de infraestrutura, muito identificado como lugar de homem.
Esse mercado concentra profissões em áreas associadas a trabalho braçal, jornada estafante ou arriscada, que já foram vetadas para elas no ado –óleo e gás, energia, mineração, saneamento e transporte (que inclui rodovia, ferrovia, hidrovia, porto e aeroporto).
Não existe um censo para contabilizar quantas são, mas dá para dimensionar o crescimento da participação pela recente organização delas. Existem muitos grupos de WhatsApp, confrarias de jantas ou de vinhos. O termômetro mais preciso é o surgimento de associações com a meta de valorizar a mão de obra feminina.
O movimento “Sim, elas existem”, por exemplo, apresenta listas de profissionais para cargos públicos nas áreas de energia e mineração desde 2018. Foi criado por Agnes Costa e Renata Isfer, quando cursavam o programa “Mulheres e Poder: Liderança em um Novo Mundo”, da Harvard Kennedy School of Government. Na época, ambas atuavam no Ministério de Minas e Energia (veja abaixo o raio x com a qualificação de todas as entrevistadas).
“O curso exigia um projeto prático. A gente viu que não tinha nenhuma mulher em cargos importantes. Para justificar o injustificável, o discurso era que não achavam mulher na hora de promover. Resolvemos mostrar que tinha”, conta Isfer. A dupla acionou colegas pedindo currículos e fez a seleção. Ao final, 193 nomes foram entregues ao governo de transição. Em 2022, a lista tinha 399 nomes.
Costa, que hoje é a única mulher na diretoria da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), explica que a lista busca corrigir uma distorção cultural. As mulheres em áreas técnicas são obcecadas por qualificação e fazem muitos cursos para evoluírem na carreira. Mas promoção e convites de trabalho dependem muito da rede de relacionamentos –e essa rede é mais organizada entre os homens.
“Minha mãe é professora, e fala que as meninas têm síndrome de boa aluna. São superestudiosas, dedicadas e, na escola, a nota boa vêm como consequência. Na carreira não”, explica.
“Podemos demorar para entender isso. A questão da consciência de gênero é tipo óculos: só quando você veste começa a enxergar coisas que nem via antes.”
O IWB, Infra Women Brazil é a maior das entidades. Como o próprio nome indica, reúne representantes de segmentos variados. Nasceu de um estranhamento na área de eventos –cinco mulheres que participavam de palestras do setor se perceberam sempre cercadas por uma centena de homens.
“Nos demos conta: não é possível que só a gente faça parte desses eventos. Tem que ter outras mulheres”, lembra Isadora Cohen, que na época, 2019, era secretária executiva do Programa de Desestatização do estado de São Paulo, responsável inclusive pelas PPPs (Parcerias Público-Privadas).
“Começamos a chamar conhecidas da infraestrutura e lançamos a hashtag ‘convidem elas’, no Linkedin e no Instagram. A partir daí fomos acostando currículos de mulheres incríveis, que poderiam estar presentes em painéis, seminários, matérias de jornais, capa das revistas, empresas e governos.” Reuniram mais 300 nomes. Cohen foi a primeira presidente quando o movimento se tornou uma entidade em 2020.
Hoje o IWB tem mais de 2.000 associadas. Mantém um programa de mentoria para orientar jovens profissionais. Trabalha para organizar dados e criar mecanismos para incentivar a participação feminina.
Um dos levantamentos contabilizou que as mulheres representam 12,7% dos integrantes de conselhos de istração das empresas de infraestrutura listadas em Bolsa no Brasil. O número é baixo, mas é quase um ponto percentual mais que a média geral.
A presidente do conselho da Sabesp, Karla Bertocco avalia que o processo de internacionalização e sofisticação financeira ajuda na diversidade da cúpula.
“No ado, infra era marcada por atuação dos governos, mas a crescente demanda de recursos privados contribui com a mudança do perfil”, afirma.
“Cada vez mais, o setor depende dos investidores de ‘bolso fundo’, com a turma gosta de chamar –investidor institucional, fundo de pensão, fundo soberano. Esses caras têm uma governança rígida, cobram mesmo antes de liberar o dinheiro: ‘Quantas mulheres vocês têm?'”
Em dezembro, a IWB promoveu o Fórum Infra Women, seu primeiro encontro anual presencial com a proposta de também angariar apoio masculino.
“Infraestrutura já foi separada por hífen. Agora, é uma palavra. Adotamos o mote infraestrutura se escreve junto, porque não dá para ficar naquele discurso de um contra o outro”, explicou Cintia Torquetto, outra fundadora e hoje presidente do IWB.
A nova abordagem considera que não dá para ignorar o papel masculino –para o bem e para o mal. Mesmo não sendo essencial, poder dar uma contribuição emocional positiva, por exemplo. A empresária Daniela Alcaro resume esse pensamento. Conta que figuras masculinas lhe ajudaram a ser arrojada na escolha da carreira e a entrar para a comercialização de energia, segmento muito parecido com o mercado financeiro, e a fundar a sua própria empresa.
“Aprendi que é importante ter homens que te apoiam, estendem a mão, acreditam em você. Tive alguns. Meu pai, meu marido, meu sócio, que em muitos momento de bifurcação diz: eu fico com a Dani”, exemplificou.
São raros os homens que agora manifestam publicamente o desconforto com a ascensão feminina no setor. O “Deus me livre uma mulher CEO”, postado pelo empresário Tallis Gomes, fundador da Easy Taxi, é um gesto raro. Mas o relato geral é que ainda existe o boicote velado, e faz parte aprender a cortar, ou ao menos saber se desviar das figuras tóxicas.
“Numa reunião só com homens, podem ignorar o que você fala, ou te cortar quando você fala. Também podem sair para o bar e não te convidar, e no bar, não no gabinete, decidem qual projeto é importante e quem vai tocar, e será algum homem”, disse, hipoteticamente, para exemplificar, Viviane Bezerra, outra fundadora do IWB, que tem longa experiência na área pública.
A cutucada no papel de mãe é outra prática que incomoda. Não são poucos os homens que perguntam para colegas como conseguem estar lá e cuidar dos filhos –questão inexistente quando é o pai.
“A maternidade ainda é uma questão para muitas mulheres, mas tendo apoio, conversando, fazendo um planejamento, não atrapalha nada. Isso é uma coisa que a mulher tem que colocar na cabeça”, explica Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo.
“Na secretaria mesmo, a gente tem 63% dos cargos de liderança ocupados por mulheres. Falo isso sempre que tenho oportunidade porque é um orgulho pela competência da mulherada. Posso citar exemplos das que engravidaram, saíram de licença maternidade e continuaram em cargos de liderança.”
Tem também a questão etária. Homens festejam a ascensão de rapazes talentosos, mas topar com uma moça na chefia já não soa tão natural. A subsecretária de Fomento e Planejamento no Ministério dos Transportes, Gabriela Avelino, sentiu esse estranhamento. Aos 30 anos, comanda uma equipe de 37 pessoas. Os mais jovens são estagiários que ela levou.
“Quando eu fui chamada para a posição, até fiquei intimidada, porque teria de sair da zona de conforto. Não tinha experiência em Brasília. Entre os subordinados, havia servidores com 20 anos de carreira efetiva no governo federal, homens. Mas pensei: não vou me sabotar. Trabalhei para antecipar as questões de legitimidade que poderia ter de enfrentar”, explica Avelino.
“Vários servidores saíram quando eu entrei, e eu sinto que foi por uma questão de, você sabe: Por que eu vou responder para essa menina">
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